O pão que dá identidade à mesa chilena
Poucas coisas falam da nossa identidade e unem tanto os chilenos como o nosso amor pela marraqueta. De acordo com vários rankings internacionais, o Chile é um dos países com maior consumo de pão do mundo e, de todas as variedades locais, a marraqueta é, sem dúvida, a rainha. A sua forma, versatilidade e omnipresença fazem dela um dos elementos mais identificáveis da tradição culinária nacional.
Nesta primeira edição de Voces de Chile, quisemos perceber porque é que a marraqueta é tão importante para a nossa gastronomia, falando com quatro pessoas que conhecem bem o assunto. Visitámos La Superior, uma das padarias mais tradicionais e premiadas do país, visitámos o restaurante José Ramón 277, famoso pelas suas sanduíches de marraqueta, e falámos com o reconhecido escritor gastronómico Álvaro Peralta, Don Tinto. Estes são os seus testemunhos.
Estou na padaria há trinta anos, comecei quando tinha 33 anos. Tinha um emprego longe e um dia, enquanto esperava o autocarro na paragem da esquina, um homem disse-me: "Vejo-te sempre aqui tão cedo, porque não vais a La Superior, talvez estejam à procura de ajuda". Acabei por ganhar coragem e fui perguntar; contrataram-me logo.
O proprietário perguntou-me se eu sabia manusear a caixa, eu disse que sim, mas não fazia ideia. Felizmente, aprendi rapidamente e comecei a subir na hierarquia. Fui caixa, depois secretária, depois administradora e finalmente comprámos a padaria com um sócio.
Estou no sector há 53 anos. Comecei com 17 anos, como ajudante de entregas numa padaria de Conchalí e depois, olhando à volta, aprendi o ofício de padeiro. Nunca mais deixei de o fazer.
Em muitos sítios o pão é feito com máquinas, mas aqui é um processo completamente artesanal em que tudo passa pelas nossas próprias mãos. É isso que eu adoro neste trabalho, é puro amor.
O forno chileno é a coisa mais fabulosa, é o que dá o toque ao pão. Este em particular foi construído com cerca de cem toneladas de pastelones, um material semelhante ao tijolo. Restam muito poucos, pois o seu fabrico é muito dispendioso.
A base da panificação no Chile é a marraqueta. Historicamente, o facto de se fazer marraqueta movimenta a venda do resto dos pães, como a hallulla, o bocado ou a frica.
Penso que todos nós, no Chile, partilhamos a memória de uma marraqueta torrada de manhã, antes de ir para a escola, ou de uma ida à praia ou à montanha com uma sandes de marraqueta.
Aos 17 anos, quando terminei a escola, comecei a trabalhar em restaurantes. Gostei e decidi estudar culinária. Desde então, trabalhei em vários sítios e em todos eles tentei resgatar a identidade culinária do Chile.
José Ramón tem doze anos, eu cheguei seis meses depois da abertura. Quando fui convidado, já existia a ideia de uma choperia e de uma sanguchería, mas pouco a pouco foi-se fazendo uma investigação orgânica para dar um toque especial ao tradicional sánguche chileno.
Descobrimos que cada zona do país tem as suas particularidades: no norte há a sandes de peixe; no centro, a carne de porco, as prietas, o arrollado e o lomito são fortes; no sul, a carne de vaca e o queijo. Pegamos em todas estas influências para criar o nosso menu.
Decidimos que tínhamos de comer a mais chilena das marraquetas e procurámos os fornos chilenos ainda em funcionamento. Devem restar três ou quatro em toda a cidade de Santiago, sendo um deles La Superior. Foi um encontro mágico chegar a essa padaria, conhecer Dona Cecília, a padeira. É um verdadeiro museu vivo.
O que mais chama a atenção dos estrangeiros que passam pelo restaurante é a versatilidade da marraqueta: podem prová-la com mechada, com lomito, com prietas. As possibilidades são infinitas, mas sempre de alta qualidade.
Quando era criança, vivia em Santa Cruz e, quando tinha de ir comprar pão, escolhia sempre a Panificadora Santa Cruz, mesmo sendo a mais longe de minha casa, só porque gostava da marraqueta. Até hoje, quando a visito, compro pão lá e ainda tem o mesmo sabor da minha infância.
Nunca pensei que viria a ser escritora de gastronomia, nem quando escolhi uma carreira no jornalismo, nem quando comecei a trabalhar como jornalista. Mas sempre gostei de comer e depois, quando fui viver sozinha, comecei a cozinhar. Quando estava no The Clinic, comecei a explorar seriamente este tema ao qual me dediquei nos últimos 15 anos. Foi um percurso longo e cheio de acontecimentos.
Costumo dizer que a gastronomia é o espelho de uma sociedade. Há poucas coisas que são transversais no nosso país, mas o pão, e sobretudo a marraqueta, é uma delas.
O pão é importante em toda a América Latina, mas no Chile, a imigração espanhola no início do século XX criou uma indústria, desenvolveu diferentes tipos de pão e alterou os costumes locais. Por exemplo, enraizou-se a tradição de comprar pão todos os dias.
A marraqueta tornou-se uma das preferidas dos chilenos, penso que por uma razão estética: é o único pão que não se assemelha a nenhum outro pão, a singularidade da forma só existe no nosso país.
A marraqueta fala-nos do Chile. Não consigo imaginar uma receção a estrangeiros com outro pão que não seja este. Os chilenos que vivem no estrangeiro dizem que o que mais sentem falta do Chile é o pão e a marraqueta em particular.
A marraqueta dá identidade à mesa chilena. Se quisermos uma imagem da nossa mesa, a marraqueta é obrigatória. É uma caraterística distintiva. A marraqueta é uma marca.
A minha canção chilena favorita é El pueblo unido jamás será vencido, de Quilapayún.